A publicação de Ser e o Tempo em 1927 inaugura uma virada decisiva no pensamento filosófico do século XX. Martin Heidegger, então jovem professor em Marburgo, apresenta uma obra que não apenas dialoga com a tradição fenomenológica de seu mestre Edmund Husserl, mas também a subverte em direção a uma ontologia radicalmente nova. Para compreender a força disruptiva do projeto heideggeriano, é necessário situá-lo no contexto intelectual que o antecede. O final do século XIX e o início do século XX testemunharam uma crise dos fundamentos filosóficos da modernidade. O racionalismo cartesiano, o idealismo alemão e o positivismo, cada qual em sua medida, consolidaram uma concepção de sujeito cognoscente que se relaciona com o mundo como observador neutro, reduzindo a realidade ao estatuto de objeto a ser descrito, explicado ou manipulado. Mesmo a fenomenologia de Husserl, ao insistir na redução eidética e no retorno às coisas mesmas, preservava, ainda que em nova chave, a primazia de uma consciência que doa sentido ao mundo a partir de sua intencionalidade.
Heidegger, contudo, percebe que tal modelo mantém intacta a cisão entre sujeito e objeto, consciência e mundo, teoria e prática. Para ele, a filosofia, desde a Antiguidade, caiu no que denomina “esquecimento do ser”, ao substituir a questão originária – o que significa ser? – por investigações sobre os entes, suas propriedades e suas causas. Parmênides e Aristóteles ainda haviam tematizado o ser como questão inaugural, mas, na tradição posterior, essa pergunta foi sendo obscurecida em favor de construções metafísicas que reduziram o ser à ideia, à substância, ao ente supremo ou a um fundamento estável. Em Descartes, por exemplo, a separação entre res cogitans e res extensa cristaliza a dualidade sujeito-objeto que orientará grande parte da modernidade. Em Kant, a crítica da razão pura redefine os limites do conhecimento, mas mantém a centralidade do sujeito transcendental como instância estruturante da experiência. Heidegger vê nesse percurso uma constante: a tendência a tomar o ser como dado evidente e autoexplicativo, sem problematizar o modo pelo qual ele se manifesta.
É nesse ponto que Ser e o Tempo se apresenta como tentativa de reativar a questão fundamental da filosofia. Heidegger formula-a em termos claros: o ser é aquilo que sempre já compreendemos em alguma medida, mas cujo sentido permanece obscuro. Ao invés de pressupor essa compreensão tácita, cabe à filosofia desvelar o horizonte em que o ser se torna acessível. Essa investigação não pode ser realizada pela ciência positiva nem pela lógica tradicional, pois ambas partem de pressupostos ontológicos não examinados. A tarefa heideggeriana é mais radical: trata-se de realizar uma ontologia fundamental que investigue as condições de possibilidade de toda compreensão do ser.
Para tanto, Heidegger propõe um gesto metodológico inédito: a análise do ente que, em sua própria existência, já compreende o ser, ainda que de modo pré-reflexivo. Esse ente é o ser humano, ao qual ele dá o nome de Dasein, literalmente “ser-aí”. A escolha do termo já indica a ruptura com a tradição. Não se trata de falar em “homem”, “sujeito” ou “consciência”, categorias carregadas por pressupostos metafísicos, mas de designar o modo de ser daquele que se encontra lançado em um mundo, sempre situado em circunstâncias históricas e factuais. O Dasein é aquele ente que, em sua própria estrutura, já possui uma compreensão pré-ontológica do ser. Essa compreensão, embora vaga, torna possível formular a questão que a tradição negligenciou.
Essa inflexão metodológica é central para o projeto de Ser e o Tempo. Ao invés de construir sistemas abstratos ou de postular fundamentos transcendentais, Heidegger dirige-se à existência concreta, cotidiana e fática. O que interessa é analisar as estruturas do ser-no-mundo, ou seja, os modos como o Dasein se relaciona com seu entorno, com os outros e consigo mesmo. Esse enfoque não implica abandono da filosofia em direção à antropologia ou à psicologia, mas a inauguração de uma analítica existencial que busca descrever as condições ontológicas da existência humana enquanto tal. É nesse sentido que Heidegger fala em “ontologia fundamental”: uma investigação que não se restringe a categorias ônticas, mas procura revelar o horizonte em que qualquer ente pode ser compreendido como tal.
A radicalidade da obra também se evidencia em sua crítica à neutralidade do conhecimento teórico. Ao invés de supor que a atitude contemplativa é a forma originária de relação com o mundo, Heidegger mostra que essa postura deriva de um modo mais primário de estar-no-mundo. Antes de conhecer objetos, o ser humano já se encontra imerso em práticas, usos e significados. O martelo, para usar o célebre exemplo, não é apreendido em primeiro lugar como objeto físico com propriedades mensuráveis, mas como instrumento “à mão” em sua serventia para pregar. Essa inversão metodológica desloca o primado da teoria em favor da vida cotidiana, entendida não em sua banalidade, mas como lugar privilegiado de manifestação do ser.
Portanto, a tarefa inicial de Ser e o Tempo consiste em recolocar a filosofia diante de sua questão originária e, para isso, descrever as estruturas fundamentais do Dasein como ser-no-mundo. Essa descrição não é mera antropologia descritiva, mas um caminho fenomenológico que, ao explicitar a existência humana, abre o horizonte para a compreensão do ser em geral. Heidegger pretende, com isso, superar o esquecimento da tradição e mostrar que o sentido do ser não é uma entidade estática, mas algo que se revela na própria temporalidade do existir. É por isso que a obra caminha em direção à temporalidade como chave de compreensão da ontologia. O ser, longe de ser um conceito fixo, só pode ser compreendido a partir do tempo, e é nesse entrelaçamento que a filosofia encontra sua tarefa mais radical.
A analítica existencial empreendida por Heidegger parte do reconhecimento de que o ser humano não pode ser reduzido a um sujeito isolado, nem descrito por categorias empíricas derivadas das ciências naturais. A estrutura fundamental do Dasein é o ser-no-mundo (In-der-Welt-sein), expressão que rompe com o dualismo sujeito-objeto e que indica uma unidade originária. O homem não está “dentro” do mundo como um objeto em um espaço, nem o mundo está “fora” como um conjunto de coisas disponíveis à percepção; antes, o Dasein já se encontra sempre em meio a um campo de significados, práticas e relações. Esse é o traço constitutivo da existência: a inseparabilidade entre o ser humano e o mundo em que vive.
O conceito de mundo, em Heidegger, não designa simplesmente o conjunto de entes, mas o horizonte de significatividade em que eles se tornam compreensíveis. Um objeto não é primeiramente percebido como coisa em si, mas como algo inserido em uma rede de remissões e utilidades. O martelo só faz sentido porque remete ao pregar, que remete à madeira, que por sua vez remete à construção. Essa estrutura de remissões constitui o que Heidegger chama de totalidade de referência, que só pode ser compreendida a partir da familiaridade prática com o mundo. Por isso, a prioridade não cabe à atitude teórica, que isola objetos e analisa suas propriedades, mas à ocupação cotidiana, na qual os entes se mostram em sua serventia e disponibilidade. Assim, o ser-no-mundo é, antes de tudo, um ser-prático, um existir que se compreende por meio da lida e do uso.
Essa concepção tem consequências decisivas. Em primeiro lugar, revela que a atitude científica e objetivante não é originária, mas derivada. O cientista que observa o martelo como objeto físico, analisando sua massa e composição, só o faz após já ter sido imerso em um mundo de significados no qual o martelo tem um uso. Em segundo lugar, mostra que a compreensão do mundo não é algo posterior à experiência, mas condição prévia de qualquer relação com os entes. Antes de qualquer teoria, o Dasein já se encontra compreendendo, mesmo que de modo vago e pré-reflexivo, o horizonte em que vive.
Outro aspecto decisivo da analítica heideggeriana é a cooriginariedade do ser-com (Mitsein). O Dasein não existe como indivíduo isolado que, em um segundo momento, entra em relação com os outros. A existência humana é sempre compartilhada, desde o início atravessada pela convivência, pela linguagem e pelas práticas coletivas. Mesmo quando o indivíduo está só, sua experiência já é mediada pelas formas de vida que o precedem. Essa dimensão do ser-com se manifesta, no cotidiano, no modo como o Dasein se dilui na impessoalidade do “se” (das Man). Vive-se, pensa-se e age-se segundo o que “se faz” e “se diz”, abdicando da responsabilidade por si mesmo. Esse modo inautêntico não é uma falha ou acidente, mas uma estrutura constitutiva da existência: todos os homens se encontram, em maior ou menor grau, sob o domínio do impessoal, e só a partir dele podem buscar a autenticidade.
A vida cotidiana, portanto, ocupa papel central na análise de Heidegger. Longe de ser desprezada como trivial, ela é vista como o lugar onde se manifesta a estrutura fundamental do ser-no-mundo. O cotidiano revela a proximidade dos entes à mão, a convivência com os outros e a familiaridade com o mundo. Mas é também nele que se esconde a singularidade da existência, uma vez que o impessoal tende a nivelar todas as possibilidades, produzindo uma conformidade que obscurece a responsabilidade individual. Heidegger não descreve essa situação como um defeito moral, mas como uma condição existencial, da qual é possível emergir pela experiência da angústia e pela antecipação da morte.
O ser-no-mundo, assim, não é um simples estar no espaço, mas uma forma originária de existência, marcada pela significatividade, pela convivência e pela historicidade. Ele mostra que o homem não é espectador do mundo, mas ser lançado em meio a ele, confrontado com a tarefa de compreender-se a partir desse horizonte. É nesse contexto que Heidegger insiste que o Dasein é sempre projeto: não possui essência pré-determinada, mas constrói sua existência na abertura de possibilidades. Essa abertura é o que diferencia radicalmente o Dasein dos demais entes. A pedra simplesmente é; o animal vive em um ambiente; mas o homem existe, isto é, compreende-se e projeta-se em suas próprias possibilidades. Essa existência projetiva, enraizada na temporalidade, constitui a base sobre a qual Heidegger edificará a ligação entre ser e tempo.
A leitura de Ser e o Tempo permite perceber que Heidegger, ao recolocar a questão do ser como problema fundamental da filosofia, rompe de modo radical com a tradição metafísica que reduziu a existência a uma presença estática ou a uma substância permanente. Sua analítica do Dasein mostra que o ser humano não é um objeto entre outros, nem uma consciência isolada, mas um ser-no-mundo, sempre já situado em um horizonte de significados e relações. A vida cotidiana, longe de ser desprezada, é elevada à condição de espaço privilegiado de manifestação da estrutura ontológica da existência, ainda que marcada pela tentação constante da impessoalidade e da inautenticidade.
A análise do mundo como rede de remissões, do ser-com como cooriginário e da historicidade como constitutiva da existência evidencia que o homem não pode ser compreendido fora de sua abertura ao tempo. É justamente na temporalidade que se revela a essência do Dasein: projetado ao futuro, enraizado em um passado que lhe antecede e atualizado em um presente de escolhas concretas. Essa temporalidade ekstática, que integra antecipação e facticidade, permite compreender o ser não como um dado fixo, mas como horizonte dinâmico de possibilidades.
Com isso, Ser e o Tempo não apenas diagnostica o esquecimento da questão do ser na tradição ocidental, mas também inaugura um novo caminho filosófico. Ao articular ser e tempo em uma unidade indissociável, Heidegger mostra que a existência humana é, em sua essência, projeto finito e histórico, sempre ameaçado pela dispersão no impessoal, mas também sempre aberto à possibilidade da autenticidade. A obra, assim, permanece como referência incontornável para o pensamento contemporâneo, não porque ofereça respostas definitivas, mas porque restitui à filosofia a tarefa originária de interrogar o ser a partir da própria experiência concreta do existir.

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