Drácula, de Bram Stoker: a construção moderna do mito do vampiro

Poucos romances lograram um impacto tão duradouro na cultura ocidental quanto “Drácula” (1897), obra-prima do irlandês Bram Stoker. Mais do que uma simples narrativa de terror, o romance se erige como um complexo artefato cultural, expressão privilegiada das ansiedades, angústias e contradições que marcaram o final do século XIX europeu, período que a historiografia e a crítica cultural denominam de “fin de siècle”.

A obra inscreve-se na tradição do romance gótico, que desde o século XVIII se caracteriza pela exploração de espaços obscuros e decadentes, personagens atormentados e a presença do sobrenatural, mas simultaneamente incorpora e tensiona elementos da modernidade, como a ascensão da ciência, o imperialismo britânico e as transformações nos papéis sociais, especialmente os de gênero.

O Conde Drácula, protagonista e antagonista do romance, tornou-se uma das imagens mais perenes da alteridade radical, sendo reconfigurado incessantemente pela literatura, pelo cinema, pela televisão e pela cultura pop. Esta permanência atesta a riqueza simbólica e a polivalência interpretativa da obra de Stoker, que, mais de um século após sua publicação, continua a suscitar análises interdisciplinares, da crítica literária à psicanálise, da filosofia à teoria pós-colonial.

Embora frequentemente identificado como o inventor do mito do vampiro moderno, Bram Stoker foi, na verdade, herdeiro de uma vasta tradição cultural e literária. As crenças em mortos-vivos, sugadores de sangue ou entidades demoníacas que se alimentam da força vital dos vivos são universais, sendo encontradas em culturas tão diversas quanto a babilônica, a chinesa e a africana.

Particularmente na Europa Oriental, as lendas eslavas e romenas sobre vampiros — ou “strigoi” — exerceram profunda influência sobre a imaginação ocidental. O século XVIII viu a emergência do “pânico vampírico”, sobretudo nos territórios do Império Habsburgo, com casos documentados de exumações e execuções de supostos vampiros, fenômeno que alimentou o interesse de filósofos iluministas como Voltaire e Montesquieu.

Na literatura, o vampiro adquire contornos ficcionais e aristocráticos a partir do conto “The Vampyre” (1819), de John Polidori, que inaugura a figura do vampiro sedutor, elegante e cosmopolita, a partir de traços inspirados em Lord Byron. Essa concepção é posteriormente retomada e expandida no conto “Carmilla” (1872), de Sheridan Le Fanu, cuja protagonista homônima introduz o elemento da sedução homoerótica, aspecto que também se insinua, de modo ambivalente, em “Drácula”.

Assim, Bram Stoker não cria ex nihilo, mas realiza uma sofisticada síntese e inovação, amalgamando a tradição folclórica com a ficção gótica e inserindo a figura do vampiro no coração das tensões ideológicas e culturais do final da era vitoriana.

A personagem de Drácula condensa múltiplos significados. Inspirado, ao menos nominalmente, na figura histórica de Vlad III, o Empalador (1431-1476), príncipe da Valáquia notório por sua ferocidade, o Conde é simultaneamente um aristocrata decadente, um guerreiro medieval e uma entidade sobrenatural que transcende as categorias humanas.

A sua transilvanidade adquire função simbólica, representando o oriente europeu como espaço bárbaro e pré-moderno, em contraste com o ocidente racional e industrializado. Nesse sentido, a narrativa pode ser lida como uma “invasion literature”, subgênero popular na Inglaterra vitoriana, em que o medo de uma invasão estrangeira — seja militar, cultural ou biológica — é tematizado como ameaça à hegemonia britânica.

O Conde Drácula personifica esse temor: ele é o estrangeiro que, utilizando-se dos próprios recursos modernos — navio, conhecimento das línguas, estratégias legais —, infiltra-se em Londres, epicentro do Império Britânico, ameaçando sua ordem social e moral.

Ao mesmo tempo, Drácula representa a crise da aristocracia tradicional, figura que sobrevive na modernidade apenas como uma forma parasitária, literalmente sugando a vitalidade das classes emergentes. Assim, o vampiro é também uma alegoria do declínio de uma ordem social obsoleta, frente ao avanço da burguesia e da ciência.

“Drácula” se destaca por sua estrutura polifônica, organizada como um romance epistolar fragmentário, que reúne diários, cartas, memorandos, telegramas e recortes de jornal. Este procedimento formal — já utilizado na literatura inglesa desde o século XVIII — adquire aqui uma função crucial: confere verossimilhança à narrativa fantástica e amplia a multiplicidade de pontos de vista.

Além disso, a fragmentação do relato espelha a própria fragmentação do sujeito moderno, característica fundamental das literaturas do “fin de siècle”. Os documentos produzidos pelas personagens tentam organizar e compreender o fenômeno que as assola, mas jamais conseguem oferecer uma explicação unívoca ou definitiva.

Este jogo de perspectivas evidencia a tensão entre o discurso científico-positivista, que busca ordenar o real, e o irracional ou sobrenatural, que resiste a toda tentativa de categorização. Assim, o romance de Stoker pode ser lido como uma metáfora da falência do paradigma iluminista, incapaz de conter ou explicar a alteridade radical representada pelo vampiro.

Entre os aspectos mais explorados pela crítica contemporânea encontra-se a relação entre o vampirismo e a sexualidade reprimida. A sociedade vitoriana, marcada por um rigoroso código moral e pelo ideal da pureza feminina, vê-se confrontada, na narrativa de Stoker, com figuras femininas que, ao serem mordidas pelo Conde, experimentam um despertar sexual ambíguo, simultaneamente erótico e monstruoso.

A personagem de Lucy Westenra, cuja progressiva degeneração é descrita em termos médicos e patológicos, exemplifica essa dinâmica: após ser atacada, ela passa de uma jovem dócil e virtuosa a uma criatura sedutora e predatória, que precisa ser eliminada para restaurar a ordem social.

Por outro lado, o romance problematiza o papel da ciência na sociedade moderna. O médico Van Helsing, apesar de seu saber científico, é obrigado a recorrer a instrumentos arcaicos — como crucifixos, hóstias e estacas —, reconhecendo implicitamente a insuficiência da ciência para enfrentar o sobrenatural.

Essa tensão reflete o contexto histórico da época: o fim do século XIX é marcado por profundas transformações no campo do saber, com o surgimento da psicanálise freudiana, a teoria da evolução de Darwin e as novas correntes filosóficas que questionam o racionalismo clássico. “Drácula” inscreve-se nesse cenário, dramatizando o embate entre ciência e espiritualidade, progresso e tradição, razão e superstição.

A oposição entre os espaços rurais e exóticos da Transilvânia e a metrópole moderna de Londres estrutura simbolicamente o romance. A Transilvânia é apresentada como um espaço arcaico, regido por forças obscuras e saberes ancestrais, enquanto Londres simboliza a racionalidade, a ciência e o progresso industrial.

Contudo, o percurso do Conde Drácula subverte essa dicotomia: ele atravessa o limiar geográfico e cultural, penetrando no coração da civilização vitoriana e revelando a fragilidade de suas fronteiras.

Este deslocamento espacial, além de constituir uma metáfora da contaminação cultural, expressa também o medo das elites britânicas em face da crescente imigração, do imperialismo reverso e da crise identitária do Império.

Embora “Drácula” tenha obtido relativo sucesso na época de sua publicação, sua consagração definitiva se deu no século XX, sobretudo com a sua adaptação cinematográfica. O filme “Nosferatu” (1922), de F.W. Murnau, foi a primeira transposição para o cinema, ainda que não autorizada, estabelecendo uma estética expressionista que marcaria o imaginário vampiresco.

Posteriormente, a versão de Tod Browning com Bela Lugosi (1931) consolidou o arquétipo do vampiro aristocrático e sedutor, multiplicando-se em infinitas variações: desde o vampiro trágico de “Entrevista com o Vampiro” (1994), até a figura adolescente e romantizada de “Crepúsculo” (2008).

Além disso, “Drácula” gerou um campo fértil para estudos acadêmicos, especialmente a partir das décadas de 1970 e 1980, com a emergência da crítica psicanalítica, da teoria feminista e dos estudos pós-coloniais. Obras como “Reading the Vampire” de Ken Gelder, e “Dracula and the Western Tradition” de Carol A. Senf, exemplificam a vitalidade interpretativa da obra.

“Drácula” é, em última instância, um romance sobre os limites da modernidade: ele dramatiza a fragilidade das fronteiras entre o humano e o monstruoso, o racional e o irracional, o civilizado e o bárbaro.

Por meio de sua estrutura inovadora, de sua riqueza simbólica e de sua potência imagética, a obra de Bram Stoker permanece como um clássico imprescindível, capaz de dialogar com as angústias e os dilemas de cada nova geração.

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