Les Misérables, ou Os Miseráveis, na tradução para o português, é mais do que uma narrativa ficcional, trata-se de um retrato potente das desigualdades sociais, da luta popular e das transformações políticas da França do século XIX. A obra de Victor Hugo emerge em um contexto de intensas mudanças históricas que marcaram a transição da Idade Moderna para a Idade Contemporânea.
A Revolução Francesa, em 1789, alterou radicalmente a estrutura política e social do país, pondo fim ao Antigo Regime e à monarquia absolutista por meio do movimento jacobino e do chamado Período do Terror. No início do século XIX, a França presenciou a ascensão de Napoleão Bonaparte, estabelecendo o Primeiro Império. Mais adiante, já em meados do século, ocorre a restauração monárquica com o Segundo Império Francês, sob o governo de Napoleão III.
É nesse cenário de instabilidade e repressão política que se insere Victor-Marie Hugo (1802–1885), um dos maiores nomes da literatura francesa. De origem aristocrática — seu pai foi general de Napoleão Bonaparte —, Hugo estudou no prestigiado Liceu Louis-le-Grand, em Paris. Com o tempo, destacou-se no meio intelectual, sendo eleito para a Academia Francesa e frequentando os círculos da corte das Tulherias. Em 1845, foi nomeado membro do Senado, demonstrando já então preocupação com a miséria das classes populares.
Em 1851, no entanto, o então presidente Napoleão III — violando a constituição vigente — deu um golpe de Estado e se autoproclamou imperador, instaurando o Segundo Império e impondo um regime autoritário. Victor Hugo se opôs ativamente ao golpe e à repressão, tentando organizar a resistência republicana. Perseguido politicamente, refugiou-se em Bruxelas e passou mais de 18 anos no exílio.
Foi nesse período de exílio, considerado o mais fecundo de sua produção literária, que Victor Hugo escreveu Os Miseráveis (1862). A obra, monumental em extensão e profundidade, denuncia as desigualdades sociais e dá voz aos marginalizados, simbolizando a esperança de justiça e transformação social mesmo em tempos de opressão.
Mas o que torna Os Miseráveis, com suas 1.511 páginas na edição original, uma obra tão fascinante e instigante ainda nos dias de hoje? Certamente, o enredo envolvente e o desenvolvimento cuidadoso da narrativa contribuem para prender a atenção do leitor do início ao fim. No entanto, é o contexto histórico e intelectual em que foi escrita que confere à obra uma profundidade singular, oferecendo não apenas uma compreensão da sociedade francesa do século XIX, mas também um valioso panorama histórico daquele período. Trata-se de uma era marcada por instabilidade política, acentuadas desigualdades sociais e intensos debates ideológicos.
Mesmo após a Revolução Francesa, o país continuava atravessando sérias dificuldades estruturais. A sociedade permanecia rigidamente estratificada, e a miséria ainda assola grande parte da população. Correntes filosóficas e científicas dominantes na época, como o positivismo, muitas vezes desconsideravam a relevância de abordar literariamente a realidade social dos marginalizados, relegando-os à invisibilidade.
Nesse contexto turbulento, marcado por eventos como as Revoluções de 1848 e a publicação do Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels no mesmo ano — ambos determinantes para o desenvolvimento das ideologias modernas —, Victor Hugo concebe uma obra que dialoga diretamente com seu tempo e transcende sua época.
O romance foi originalmente publicado em cinco volumes, cada um centrado em um núcleo de personagens cuja trajetória acaba por se entrelaçar, compondo uma narrativa densa e interconectada. Hugo retrata com grande verossimilhança a realidade dos que viviam à margem da sociedade. Jean Valjean, protagonista do romance, representa o indivíduo condenado pela pobreza desde o nascimento, cuja trajetória de vida é marcada pela exclusão, pela repressão e pela tentativa constante de reintegração social.
O romance também confere expressivo protagonismo às personagens femininas. Fantine e Cosette ocupam papel central no desenvolvimento do enredo, representando a vulnerabilidade, mas também a resistência das mulheres diante de uma sociedade patriarcal e desigual.
Do ponto de vista histórico e literário, Os Miseráveis constitui uma verdadeira aula sobre o século XIX europeu, especialmente na França, ao abordar com sensibilidade episódios como a Batalha de Waterloo, a Restauração Bourbon, a Revolução de Julho de 1830 e o Motim de Junho de 1832. Em plena era do Romantismo, Victor Hugo alia compromisso político e expressão estética, oferecendo uma visão comovente e crítica da sociedade de seu tempo. Sua obra vai além da crônica histórica: é uma profunda reflexão universal sobre justiça, dignidade e esperança.
A evidência no romance de como a pobreza, a desigualdade e a exclusão social são frutos não apenas do destino individual, mas de estruturas sociais e políticas que falharam em proteger os mais vulneráveis. Ambientando o contexto de instabilidade pós-napoleônica, marcado por revoluções populares e pelo avanço desigual da Revolução Industrial, o romance se propõe como uma crítica contundente à ordem burguesa que se consolidava na França.
A pobreza é retratada como uma condição estrutural. A trajetória de Jean Valjean, inicialmente condenado por roubar um pão para alimentar a família da irmã, revela o sistema penal brutal e desumano que marcava o período. Sua marginalização após a prisão ilustra como o estigma social impede qualquer tentativa de reintegração. Da mesma forma, Fantine representa a figura da mulher trabalhadora abandonada pelas instituições, vítima da exploração econômica, da moralidade burguesa e do abandono do Estado. A miséria atinge ainda os mais jovens, como Cosette e Gavroche, personagens que simbolizam uma infância vulnerável, deixada à margem do progresso econômico impulsionado pela industrialização.
A força dessa denúncia social ultrapassou os limites do livro. A adaptação cinematográfica de Os Miseráveis, lançada em 2012 e dirigida por Tom Hooper, levou a história a um novo público global, unindo o poder da música e da performance dramática. Com Hugh Jackman, Anne Hathaway e Russell Crowe nos papéis principais, o filme foi aclamado pela crítica, indicado a oito Oscars e vencedor de três, incluindo Melhor Atriz Coadjuvante para Hathaway, por sua interpretação intensa e comovente de Fantine. O sucesso da produção reafirma a atualidade dos temas tratados por Hugo e a universalidade de sua crítica social.
Os Miseráveis, portanto, vai além da ficção: é um manifesto literário sobre os efeitos perversos da modernidade capitalista e da ausência de políticas sociais justas. Victor-Hugo oferece, com sua prosa grandiosa, uma denúncia atemporal da marginalização institucionalizada e um apelo à solidariedade humana, o que torna esse um dos romances mais canônicos da literatura mundial.

Oi, sou a Amanda! Tenho 24 anos, estudo Letras com habilitação em alemão pela Universidade de São Paulo e sou uma entusiasta apaixonada por literatura e arte. Me perco nos clássicos russos, alemães e ingleses, encontro beleza na música e, quando se trata de nossa literatura brasileira, Clarice Lispector é meu porto seguro. Aqui no blog, divido minhas reflexões e descobertas literárias e afins.