Os filósofos pré-socráticos

A filosofia nasce de uma inquietação radical diante do mundo. Muito antes de se constituir em disciplina sistemática, ela já existia como atitude de espanto diante da realidade, como desejo de compreender as coisas para além das aparências imediatas e das narrativas herdadas. É nesse horizonte que se inserem os chamados filósofos pré-socráticos, homens que, nos séculos VII e V a.C., ousaram romper com o paradigma mítico e propor uma nova forma de explicar a realidade. O termo “pré-socrático”, embora útil, pode induzir a equívoco, pois sugere que esses pensadores seriam apenas uma introdução a Sócrates, Platão e Aristóteles, como se sua função fosse a de simples precursores. Na verdade, o que se vê em suas reflexões é a inauguração da própria filosofia: é com eles que surge a exigência de fundamentação racional, a busca por princípios universais, a tentativa de compreender o cosmos como ordem necessária e inteligível. O que está em jogo não é apenas o conteúdo de suas teses, mas o gesto intelectual de pensar de modo crítico e independente da tradição mítica.

Até então, a cultura grega encontrava suas explicações do mundo nas obras de Homero e Hesíodo. Nelas, o cosmos aparecia como resultado da ação de deuses antropomórficos, dotados de paixões e conflitos semelhantes aos humanos. O nascer e o pôr do sol, as tempestades, as colheitas e até a guerra eram concebidos como expressão da vontade divina. Essa visão, embora coerente em seu próprio universo, não satisfazia plenamente a necessidade de encontrar uma ordem que transcendesse o arbitrário. Os pré-socráticos iniciaram o que Aristóteles, séculos mais tarde, chamaria de investigação da arché, isto é, do princípio originário. Em lugar de narrativas poéticas, buscou-se um fundamento permanente capaz de explicar a unidade e a diversidade da realidade. É nesse sentido que se pode falar de uma verdadeira revolução do pensamento: o deslocamento do mito para o logos.

Entre os primeiros a inaugurar esse novo caminho estiveram os filósofos de Mileto: Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Tales, apontado pela tradição como o primeiro filósofo, teria afirmado que a água é o princípio de todas as coisas. Essa formulação, por mais simples que pareça, já representa uma ruptura decisiva: a natureza é explicada a partir de um elemento que pertence ao próprio mundo natural, e não por meio de deuses ou forças sobrenaturais. Anaximandro, seu discípulo, foi além ao introduzir a noção de ápeiron, o indeterminado, como origem de tudo. Esse conceito revela uma sofisticação filosófica surpreendente, pois indica que a arché não precisa ser algo sensível ou empírico, mas um princípio abstrato, ilimitado e eterno, capaz de gerar a multiplicidade de seres. Anaxímenes, por sua vez, identificou o ar como elemento primordial, e elaborou uma teoria dos processos de rarefação e condensação para explicar as transformações da matéria. Ainda que rudimentares, essas concepções já traziam em si o embrião da investigação científica: a tentativa de compreender a mudança e a permanência por meio de causas imanentes.

Enquanto em Mileto se buscava uma explicação física e material do cosmos, em outros centros culturais da Grécia floresciam perspectivas diversas. Pitágoras de Samos, estabelecido em Crotona, no sul da Itália, fundou uma escola que combinava matemática, religião e filosofia. Para ele, o número era o princípio de todas as coisas. Essa afirmação significava que a realidade, em sua multiplicidade, obedecia a proporções e relações numéricas, visíveis na música, na geometria e na astronomia. A ordem do cosmos, portanto, não era caótica, mas racionalmente inteligível. Além disso, os pitagóricos associavam o conhecimento à prática de vida: viver filosoficamente implicava seguir regras de purificação, cultivar a disciplina e buscar a harmonia entre corpo e alma. Desse modo, a filosofia aparecia não apenas como saber, mas como forma de existência.

Entre as figuras mais enigmáticas do pensamento pré-socrático encontra-se Heráclito de Éfeso, cuja filosofia marcou profundamente a tradição posterior. Para ele, o mundo é fluxo contínuo, um vir-a-ser incessante em que nada permanece idêntico a si mesmo. Sua célebre metáfora do rio, no qual não se entra duas vezes porque novas águas correm sem cessar, ilustra a compreensão de que o real é movimento, contradição e transformação. No entanto, esse devir não é arbitrário nem caótico: ele obedece a uma ordem universal, o logos, que unifica a diversidade e se manifesta na tensão dos opostos. A guerra, a luta e o conflito, longe de serem acidentes indesejáveis, constituem a própria estrutura da realidade. Com Heráclito, a filosofia aprende a ver na contradição e na mudança não uma ameaça, mas o princípio vital que sustenta a totalidade.

No extremo oposto, Parmênides de Eleia construiu uma filosofia da permanência absoluta. Em seu poema Sobre a Natureza, ele afirma que o ser é uno, imutável, eterno e necessário, enquanto o não-ser é inconcebível. Assim, o movimento, a multiplicidade e o devir não passariam de ilusões dos sentidos, incapazes de alcançar a verdade. Apenas a razão pode apreender o ser em sua identidade estática. Parmênides introduziu, com isso, a distinção entre a via da opinião, fundada nos sentidos e enganosa, e a via da verdade, alcançável apenas pelo pensamento. Esse contraste radical entre Heráclito e Parmênides inaugurou um dilema central para a história da filosofia: como conciliar a experiência sensível de um mundo em transformação com a exigência racional de um fundamento permanente? Platão e Aristóteles, cada qual à sua maneira, dedicaram-se a enfrentar essa tensão, e toda a metafísica ocidental pode ser lida como resposta a esse desafio.

Na tentativa de superar a polaridade entre devir e imobilidade, surgiram os chamados pluralistas. Empédocles concebeu os quatro elementos fundamentais – terra, água, ar e fogo – como princípios eternos que, combinados em diferentes proporções, dão origem à multiplicidade dos seres. O movimento desses elementos seria regido por duas forças cósmicas opostas: o amor, que une, e o ódio, que separa. Essa formulação, ao mesmo tempo materialista e mitopoética, buscava explicar tanto a permanência quanto a mudança sem recorrer a entidades sobrenaturais. Anaxágoras, por sua vez, propôs que o universo é composto por uma infinidade de sementes ou partículas qualitativamente diversas, dotadas de todas as qualidades possíveis. O que organiza essa multiplicidade é o Nous, a inteligência cósmica, princípio ativo que imprime ordem no caos e garante a racionalidade da realidade. Essa concepção introduziu no pensamento grego a noção de uma causa ordenadora que transcende a simples materialidade dos elementos, antecipando discussões posteriores sobre teleologia e inteligibilidade.

Ainda mais radical foi a formulação atomista, desenvolvida por Leucipo e Demócrito. Para eles, tudo o que existe é composto por átomos indivisíveis e imutáveis que se movem no vazio. A diversidade dos seres resulta da infinita combinação desses átomos em movimento. Essa explicação, de caráter mecanicista, dispensava qualquer referência a forças ocultas ou divinas, reduzindo a realidade a leis de movimento que podiam, em princípio, ser compreendidas pela razão. Com o atomismo, a filosofia grega alcançou uma concepção materialista e racional do cosmos, cuja força teórica ainda repercute na ciência moderna.

Esses diversos pensadores, com suas hipóteses contrastantes, tinham em comum a recusa das explicações míticas e a confiança de que o mundo é inteligível. A investigação da natureza (physis) não se fazia mais por meio de relatos poéticos, mas por meio de argumentos e princípios racionais. É por isso que Aristóteles, em sua Metafísica, considerava os pré-socráticos os primeiros físicos, inauguradores de uma busca que, embora incipiente, já continha a semente da ciência. O mérito maior desses filósofos não está na precisão de suas respostas – muitas das quais soam ingênuas à luz do conhecimento contemporâneo -, mas no gesto de formular a pergunta fundamental sobre a origem, a unidade e o fundamento do real.

Assim, a filosofia pré-socrática legou à posteridade não apenas um conjunto de doutrinas, mas sobretudo um método, um modo de pensar. Ao tematizar a arché, o ser, o movimento, a unidade e a multiplicidade, esses pensadores criaram as categorias fundamentais que estruturariam toda a tradição filosófica posterior. Platão, ao propor a teoria das Ideias, buscava conciliar a permanência do ser parmenídico com o devir heraclítico, garantindo à realidade uma dimensão inteligível além do sensível. Aristóteles, ao desenvolver a noção de substância, ato e potência, não fez senão sistematizar e aprofundar as questões levantadas por seus predecessores.

O que se inaugura com os pré-socráticos é, em última instância, uma nova relação do homem com o mundo: em vez de submissão ao arbitrário das narrativas míticas, surge a confiança de que a razão é capaz de compreender a ordem da realidade. Trata-se de um gesto de emancipação intelectual que funda não apenas a filosofia, mas também a própria ciência. Revisitar esses pensadores significa retomar o momento originário em que a humanidade ousou pensar por si mesma, recusando explicações prontas e buscando, com rigor e coragem, os princípios que sustentam o real.

O legado dos filósofos pré-socráticos ultrapassa de muito as fronteiras de suas próprias doutrinas, pois, mesmo fragmentários e muitas vezes contraditórios, foram eles que estabeleceram as condições de possibilidade para o desenvolvimento de toda a filosofia posterior. Em primeiro lugar, ao deslocarem a explicação da realidade do âmbito mítico para o âmbito racional, instituíram a confiança no logos como instrumento capaz de revelar a ordem do cosmos. Essa confiança não foi apenas uma intuição vaga, mas um verdadeiro programa intelectual, pois implicava afirmar que o universo não é governado por caprichos divinos, mas por princípios necessários que podem ser conhecidos e demonstrados. A atitude crítica e interrogativa que caracteriza o filosofar nasce nesse momento: a recusa da tradição acrítica e a ousadia de buscar fundamentos universais.

Platão, em seus diálogos, não deixou de reconhecer a importância desse movimento inaugural. Em várias passagens, sobretudo no Teeteto, no Parmênides e no Timeu, ele dialoga com Heráclito e Parmênides, reconhecendo que a tensão entre movimento e permanência constitui o dilema central de qualquer filosofia. Sua própria teoria das Ideias pode ser vista como uma tentativa de superação: o mundo sensível, marcado pela mutabilidade, encontra sua estabilidade no mundo inteligível das Formas, que garante a identidade e a verdade. Platão compreendeu que a filosofia pré-socrática havia aberto a questão, mas cabia à sua reflexão dar-lhe resposta sistemática. Assim, ainda que os pré-socráticos não possuíssem um sistema acabado, eles forneceram o material problemático que sustentaria toda a metafísica platônica.

Aristóteles, por sua vez, dedicou parte de sua Metafísica a examinar minuciosamente os primeiros filósofos da natureza. Seu interesse era não apenas histórico, mas também teórico, pois reconhecia que eles haviam inaugurado o caminho de investigação das causas e dos princípios. Aristóteles sistematizou a reflexão ao distinguir quatro tipos de causas – material, formal, eficiente e final – e ao propor a substância como aquilo que subsiste como sujeito de predicação. Contudo, essa sistematização só foi possível porque já havia um terreno preparado pelos pré-socráticos. Tales, ao propor a água como arché, inaugurou a causa material; Anaximandro, ao pensar o ápeiron, antecipou uma causa formal abstrata; Anaxágoras, com o Nous, introduziu a ideia de causa eficiente ordenadora; e Empédocles, com as forças de amor e ódio, sugeriu algo próximo de uma teleologia cósmica. Aristóteles não apenas criticou, mas integrou essas intuições, conferindo-lhes um quadro conceitual mais rigoroso.

O eco dos pré-socráticos, entretanto, não se limitou à Antiguidade clássica. Os estoicos, por exemplo, retomaram a noção de logos heraclítico como razão universal imanente ao cosmos, estabelecendo um vínculo entre ordem cósmica e racionalidade ética. Os epicuristas, inspirados no atomismo de Leucipo e Demócrito, elaboraram uma filosofia materialista que via na combinação dos átomos a explicação última da realidade, associando a essa concepção uma ética do prazer moderado como caminho para a ataraxia. Mesmo na Idade Média, quando o cristianismo se apropriou de categorias platônicas e aristotélicas, o impulso pré-socrático de racionalizar a ordem do mundo não deixou de estar presente, ainda que subordinado a uma teologia.

Com a modernidade, as teses pré-socráticas ganharam novas leituras. O atomismo, por exemplo, foi recuperado no século XVII por pensadores como Gassendi e, mais tarde, Darwin e os físicos modernos reconheceram na concepção democritiana uma antecipação das descobertas sobre a constituição da matéria. Heráclito, com sua filosofia do devir, inspirou Hegel em sua dialética, ao passo que Parmênides foi retomado por Heidegger como aquele que apontou para a questão fundamental do ser, ainda não suficientemente tematizada pela tradição. Nietzsche, por sua vez, viu nos pré-socráticos, especialmente em Heráclito, a expressão mais vigorosa do pensamento trágico, capaz de afirmar o fluxo da vida sem apelar a transcendências.

Essa permanência ao longo dos séculos mostra que os pré-socráticos não foram pensadores marginais ou meramente introdutórios, mas fundadores. Foram eles que deram o primeiro passo para constituir a filosofia como disciplina autônoma, distinta da religião e da poesia, ainda que muitas vezes dialogando com ambas. A filosofia nasce, portanto, como um gesto de liberdade: liberdade diante do mito, liberdade diante da tradição, liberdade diante do medo. Pensar significava interrogar o mundo com a confiança de que ele é inteligível e de que a razão humana é capaz de alcançar sua estrutura. É esse gesto inaugural que explica a atualidade permanente dos pré-socráticos, pois, em última instância, sua ousadia continua sendo a nossa.

One Reply to “Os filósofos pré-socráticos”

  1. Texto Sensacional!

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